sábado, 30 de janeiro de 2010

Baseado em fatos surreais

Dia de sol, daquele tão quente que um ovo quebrado no asfalto frita em um minuto. Os crackudos como sempre no sinal, suando e assustados, pedindo e juntando as moedinhas até um total de cinco reais, que, quando alcançado, correm até a boca mais próxima e trocam a grana por uma pedrinha perigosa. O movimento na rua era normal, a quantidade de carros bem maior que a do ano passado, o ar também mais pesado, as pessoas, suadas, caminhavam na mesma pressa em busca de seus afazeres cotidianos, para o primeiro dia útil do ano, parece que as coisas mudaram, ou é impressão? O trabalho, pelo menos, é o mesmo: cheguei mais cedo , cumprimentei companheiros vizinhos, comprei o mesmo jornal de ontem, cheguei na loja e comecei a desenrolar a mesmice do ano passado. Conferir notas fiscais, abrir o caixa, conferir mercadorias, ler o jornal e começar a atender os clientes, coisa que eu mais gosto de fazer e, por sinal, o que me levou a escrever esse texto. Pois bem, o dia foi muito comum, se não fosse por um caso. Estava eu, por volta das 16 horas, conversando com um amigo de trabalho sobre o que realmente significa um ano novo, proseamos por um bom tempo... Seria o ano novo uma nova fase? Por que acreditamos nessa contagem de horas, dias e ano? Quem inventou essa tal contagem? As pessoas encaram isso como uma nova chance? Ano novo, vida nova? Discordamos, concordamos e quando enfim chegamos à conclusão final da discussão, entra uma mulher, por volta de seus 39 anos de idade, acompanhada de um filho, de mais ou menos 10 anos, e uma filha, muito mais esperta que o irmão, aparentando 15 anos. Até aí tudo bem. Observei a família e fui na direção para um possível auxilio.
–Boa tarde.
Foi o bastante para a mulher abrir o berreiro colocando sua mão no meu ombro e dizendo que queria comprar uma piscina. A menina passou a mão na cabeça da mãe e, tentando acalmá-la, falou para ela me mostrar a foto. A mulher tremendo e sem conseguir falar, sacou uma foto da bolsa e perguntou se eu conhecia o homem que estava na imagem, este um rapaz de uns 30 anos sorridente e com pinta de pagodeiro. Eu tinha certeza de nunca ter visto. Fiquei um pouco, quer dizer, muito sem jeito com toda aquela situação. Tentei acalmá-la, busquei um copo d’água e dei para a mulher que já sacava seu cigarro da bolsa. Uns trita segundos de tensão, sem saber o por que daquele choro, a menina foi devagar me perguntando se eu lembrava deste rapaz que teria ido na loja para comprar uma piscina e prometeu voltar mais tarde para fechar o negócio. Falei que lembrava do caso, porém só tinha falado com ele pelo telefone, foi daí que comecei a sacar o que provavelmente aconteceu. O homem tinha acertado que iria lá fechar o negócio e faleceu antes de consumar o ato. Matei a charada. Era isso mesmo que tinha acontecido, me recordei que o rapaz tinha marcado quinta-feira às quatro da tarde e não apareceu. Pensei que teria achado mais barato, pois diria que ia pagar a vista, poderia ter adiado a compra, mas não: ele morreu.
Tomou três tiros no mesmo horário que tinha marcado comigo, e a sua mulher, quer dizer, sua viúva, estava ali, agora, na minha frente, chorando muito, muito mesmo, chegava a gritar e tudo (!) querendo comprar a tal piscina que o marido, uma semana antes, tinha ido atrás.
Secou as lágrimas, levantou a cabeça, inspirou fundo e perguntou por uma piscina que ele tinha visto que custava mil reais e que era de fibra. Parei, pensei bem e respondi que na loja, a piscina de fibra daquele tamanho era no mínimo, pagando a vista, R$ 1500,00. Por mais que ela tenha dito que o falecido tinha passado o preço de R$ 1000,00, o valor era esse mesmo: R$ 1500,00. Tinha dado esse mesmo preço para o falecido e ele iria pagar a vista, por isso, o preço, já era com desconto. Expliquei tudinho e a choradeira começou novamente, dessa vez mais intensa, as lágrimas caíam incessantemente, por volta de um minuto, os sussurros da viúva dominaram o meu ambiente de trabalho quando uma frase intensa, tirada lá do fundo, me chamou a atenção.
–Nem tenho como ligar pra ele, defunto não fala mesmo, né? Como vou comprovar o que ele me disse?
Fiquei parado, estático, o que ela disse? O defunto não fala? Que coisa doida! O quê que ela tá falando? Aí é que complicou, daí em diante não soube nem o quê falar com a tal senhora, disse que o preço era aquele mesmo e que o máximo que poderia fazer por ela era não cobrar o frete. Não sabia o que achar daquela situação, é triste ou é engraçado? Por que dessa piscina no sétimo dia do falecido? Que doido! A mulher por sinal pagou, e pagou à vista, parou de chorar, entregou-me o dinheiro, marcou o dia da instalação e saiu com seus filhos com a cara um pouco inchada da quase overdose de lágrimas, com sua nota fiscal e seu novo cigarro aceso na mão direita. Olhei pela primeira vez para meu colega de trabalho, seus olhos arregalados para cima de mim (assustado é lógico), num tom sereno de alívio comentou nossa conclusão sobre o significado do ano novo:
–Nada mais que um dia após o outro.

Guilherme Zani