quinta-feira, 22 de julho de 2010

Uma grande confusão

-Puta que pariu, agora é isso todo dia! Dispara Seu Arlindo, na volumosa fila do ônibus numa manhã chuvosa de terça-feira.
-Isso porque você não olhou pra trás, vê só.
-Que isso Tadeu, agora deu até pra engarrafar? Pergunta o espantado seu Arlindo.
- Se fosse só isso. Retruca Tadeu mostrando ao amigo uma senhora gorda no ônibus da frente tentando passar seu cartão de gratuidade na roleta emperrada. – Olha ali!
-Que isso?- Alá dona Jane, que coisa, ela está emperrada na roleta. E agora?
-Nem sei, só sei que essa fila não anda e o nosso ônibus, com esse coitado cobrando, não sai daqui tão cedo.
-Também Tadeu, o cara ta no segundo dia fazendo isso, ele nem sabe mexer com dinheiro, a parada dele é outra, nem tem culpa.
- Será que está ganhando dobrado?
-Sei lá, pouco me importa. Responde um pouco bravo seu Arlindo.
Depois de pensar alguns instantes, seu Arlindo repara o rosto de Tadeu molhado da chuva fina e dispara:
-Claro que não está ganhando dobrado Tadeu, e claro que me importa, você acha que compraram essas porcarias de ônibus para dobrar o salário do motorista? As empresas é que estão ganhando mais com o salário do cobrador que eles mandaram embora, o pobre do trocador. O que ele deve estar fazendo agora? Catando latinha? Recebendo a miséria dos anos trabalhados e bebendo cachaça pra esquecer o desemprego? E esse motorista? Agora se fudendo todo pra cobrar e dirigir, que porra é essa? E a passagem ainda aumenta? É só pra fuder com a gente mesmo, é tudo pra fuder com a gente mesmo.
-Tá você reclamando de novo né seu Arlindo, tu não tem o que falar não?Já estou nessa fila a mais tempo que você e estou comportadinho. Deve ser por que o seu time perdeu né? Grita sorrindo lá da frente da fila, João, carregando consigo sua bolsa de ferramentas.
-Cala boca, ce nem sabe do que eu to falando, não tem que se intrometer não.
-É isso mesmo seu Arlindo, to com João, e não abro. Ao invés de ficar reclamando porque não vai ajudar a Dona Jane que ta presa na roleta? Dispara Carla, uma moça que estava atrás de seu Arlindo na fila do ônibus.
-Agora ce vê , sou obrigado a ouvir isso? Por que é que você não vai ajudar a Dona Jane? Tá cansada? Dispara Sr. Arlindo.
-Eu não, vou perder meu lugar aqui na fila.
-Então cala a boca. Grita seu Arlindo para Carla que fez uma careta para ele e abaixou a cabeça. Seu Arlindo, muito nervoso vira-se para Tadeu e dispara.
-Está vendo Tadeu, eu sou obrigado ao ouvir isso, sabe por quê? Seu Arlindo começa a aumentar o seu tom de voz e virar para as pessoas que estão na fila. -Porque eu estou inconformado com esse caos total logo de manhã, indo pro meu trabalho. Não sou obrigado a aceitar tomar no cu como vocês. Pra vocês tudo está certo né? O time ta ganhando, o filme ta passando o programinha da globo ta despertando e ainda tem vacina na igreja domingo. Pois bem, hoje é o segundo dia que esses motoristas viraram cobradores e estamos fudidos se isso continuar. Olha esse trânsito, olha esse ônibus que não sai daqui, olha essa fila, olha essa chuva chata na cara da gente. Hoje eu vou chegar atrasado e tomar uma advertência na empresa, amanhã, junto com vocês, eu vou ter que acordar mais cedo, seus burros, eu to falando sério. E esse motorista coitado? O motorista. Ta fudido como nós.
-Eu tenho pena desses motoristas, grita senhor bigode na parte da frente da fila. - Vamos falar com ele coitado, e outra, se continuar assim, a gente que vai ter que acordar mais cedo mesmo, isso é verdade.
Depois da conclusão explícita do bigode, as pessoas na fila começaram a concordar com seu Arlindo, e propor soluções para o problema.
-É isso aí seu Arlindo!
-Vamos fazer um abaixo assinado e entregar pro dono da empresa! –Que nada, vamo lá pessoalmente. – Vamos fazer uma passeata? –Eu proponho esperar. –Eu também. – Eu também. –Eu também. –Que nada, queimaremos uns ônibus. – Vamos todos andar de trem para não dar mais dinheiro pra eles. – Idéia boa, assim eles vão quebrar. – Vamos invadir o ônibus, daí não precisa de trocador mesmo. – Vamos todos comprar um carro, andar a pé,de bicicleta, sei lá.
-Chega disso gente, chega. Chega.....Chegaaaaaaaaaaa. Calem a boca, quem começou toda a discussão foi o seu Arlindo. Deixa ele falar. Seu Arlindo, a gente pode fazer o que?
-É mesmo Arlindo, a gente pode fazer o que? Só esperar?
-Que nada, hoje vou falar com esse motorista. Responde seu Arlindo agora com um ar confiante e uma postura de líder. Essa porra já não deu certo e a gente pode ajudar. Cê vai ver.
-Vambora aí gente, tentem pagar com o dinheiro trocadinho pra me ajudar aqui, cooperem aí. Grita da sua poltrana o motorista e cobrador Abdias.
Neste instante observa-se que a fila começa a andar. As pessoas afoitas para entrarem no ônibus e chegarem ao seu trabalho correm contra o tempo com medo do neoliberalismo, que dizem ser um sujeito que amedronta as pessoas, ameaçando colocar outras pessoas mais espertas, trabalhando mais e ganhando menos, no seu lugar. Enfim, o tempo era curto e as pessoas apressadas foram contando os centavos para ajudar o pobre motorista/cobrador a agilizar o troco e todo o processo de sua dupla jornada instantânea.
Observa-se ali uma cena pouco cotidiana: Dona Jane se solta da roleta depois de 30 minutos presa, O tumulto começa a se desfazer com as pessoas entrando no ônibus, o trânsito lentamente voltando ao normal, a chuva começa a ir embora quando de repente seu Arlindo, ao pagar a passagem ao motorista, dispara.
- Você viu o estado deste trânsito? E dona Jane aí na frente? Viu a discussão aqui na fila e todo mundo reclamando? Já entendeu tudo né, por que você não está, e nem tem que estar, preparado pra essa dupla jornada instantânea. Então, estamos contigo , só depende de vocês.
Neste momento a cara de espanto do motorista já era esperada, e ele custou um pouco a captar a mensagem. Ficou um pouco zonzo depois que cobrou todos aqueles clientes, observou o trânsito livre, passou a primeira marcha e partiu com seu veículo parando em todos os pontos, cobrando, ficando zonzo e pensando na misteriosa frase desferida por seu Arlindo; - Só depende de vocês.
Que queria dizer aquele senhor? Estava certo?- Mas eu tenho medo de ficar bravo e reclamar, deve ser aquele sujeitinho, o Néo.
Passando toda aquela confusão e aquele dia de trabalho árduo, o motorista tentou, em vão, a missão de cumprir a mínima jornada de trabalho nas suas noites com sua esposa e decifrou, após o grande cansaço no seu quarto de muitos amores, a grande frase do seu Arlindo.
– É mesmo, só depende de nós!

Guilherme Zani